A APOSENTADORIA ESPECIAL DA MULHER POLICIAL
- Ronaldo Costalunga Gotuzzo
- 8 de abr.
- 7 min de leitura
Uma análise a partir da concessão pelo STF da medida cautelar nos autos da ADI nº 7.727/DF
É fato incontroverso no mundo jurídico que a EC nº 103/2019 trouxe profundas alterações ao regime previdenciário dos servidores públicos e, junto a ela, uma série de contestações judiciais.
Neste cenário, o tema ora em debate surge a partir da recente concessão (17/outubro/2024), por decisão monocrática (individual) do ministro Flávio Dino, do STF, de medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 7.727/DF, que suspendeu trechos da EC nº 103/2019 que tratam da aposentadoria especial de policiais civis e federais.
Analisaremos a seguir, então, os fundamentos da medida cautelar deferida, bem como os seus efeitos, para então, esclarecer os reflexos desta decisão do STF às aposentadorias especiais das mulheres policiais civis gaúchas.
Pois bem, a decisão em tela inicia destacando que a Constituição Federal de 1988, desde a sua redação original, sempre assegurou requisitos diferenciados para fins de aposentadoria, não só entre homens e mulheres servidores públicos (gênero), mas também quanto às condições especiais a que submetidos, como é o caso dos policiais e dos professores (aposentadorias especiais), por exemplo.
Esta lógica constitucional de redução de tempo de contribuição/serviço entre os gêneros (homens/mulheres) para fins de inativação permaneceu íntegro em todas as reformas previdenciárias que se sucederam (ECs nºs 20/1998, 41/2003 e 47/2005) e até mesmo na mais recente (EC nº 103/2019), embora, com redutor temporal menos elastecido, ou seja, antes a regra geral era a redução de 5 anos, agora, de 3 anos.
No caso específico dos policiais civis e federais, a disciplina da aposentadoria especial se dava com base na Lei Complementar Federal (LCF) nº 51/1985, que em sua redação original, trazia requisitos indistintos quanto ao gênero (30 anos de serviço, para ambos os sexos, desde que 20 de exercício em cargo de natureza estritamente policial). Situação que somente foi alterada (adequando-se ao modelo constitucional) com o advento da LCF nº 144/2014, que fixou o redutor de 5 anos para os critérios até então exigidos: a mulher policial, então, passava a ter o direito à aposentadoria especial após cumpridos 25 anos de serviço, desde que contasse com 15 de exercício em cargo de natureza estritamente policial.
Contudo, como bem destacado pelo min. Flávio Dino, na reforma previdenciária ora examinada [EC nº 103/2019], a formatação constitucional mais protetora às mulheres deixou de ser assegurada às policiais civis e federais. Afinal, tanto no art. 5º, caput; quanto no art. 10, §2º, inciso I, da EC nº 103/2019, que tratam das novas regras aplicáveis aos policiais, os requisitos etários e temporais ora fixados seriam exigidos para ambos os sexos, afastando-se do vetor constitucional da igualdade material entre homens e mulheres, a merecer a pecha da inconstitucionalidade pela não diferenciação de gênero para policiais civis e federais.
Com isso, a presente decisão monocrática, que concedeu a medida cautelar, determinou: a) a suspensão da eficácia das expressões “para ambos os sexos” contidas nos dispositivos da EC nº 103/2019 [art. 5º, caput; art. 10, §2º, inciso I]; b) determinar que o Congresso Nacional corrija a inconstitucionalidade mediante a edição de norma adequada; e c) por fim, até que o novel regramento constitucional entre em vigor, determinou a aplicação por simetria da diferenciação de 3 anos de redução para todos os prazos que se refiram a mulheres policiais civis e federais.
Como já salientado, por se tratar de medida cautelar deferida monocraticamente pelo seu relator, deverá ser submetida, em breve, ao Plenário (o julgamento está aprazado para acontecer em abril/2025), ou seja, aos demais 10 ministros integrantes daquela Suprema Corte, para a sua confirmação, muito embora tal decisão seja válida e eficaz desde a sua publicação.
Ressalte-se também que as decisões finais proferidas em sede de ADI têm, em regra, efeitos retroativos (ex tunc), gerais (erga omnes) e vinculantes. Porém, a decisão que concede a medida cautelar, embora mantenha o seu caráter erga omnes (contra todos) e vinculante, em relação ao seu alcance temporal, é dotada de efeitos limitados, ou seja, possui efeitos apenas ex nunc, o que significa que não possui eficácia retroativa. A retroatividade de seus efeitos, portanto, somente se fará presente quando da decisão final, ou acaso o Plenário ao referendá-la, entenda pertinente dotá-la de tal eficácia.
Assim sendo, a questão que se impõe é: saber se a presente decisão proferida pelo STF, nos autos da ADI nº 7.727/DF, possui algum reflexo nas aposentadorias especiais das mulheres policiais civis gaúchas? E, em caso positivo, quais seriam estes efeitos?
Vejamos:
Ao primeiro questionamento a resposta é, sem dúvida alguma, positivo. E isso se deve ao fato de que, como já é sabido, por força da última reforma previdenciária, o Estado do Rio Grande do Sul editou a Lei Complementar Estadual nº 15.453, de 17 de fevereiro de 2020, que passou a dispor sobre a aposentadoria especial dos servidores da área da segurança pública, dentre eles, por evidente, dos policiais civis. E, nesta Lei Complementar, o Estado optou por reproduzir os mesmos requisitos etários e temporais previstos nos arts. 5º e 10º da EC nº 103/2019, objeto da ADI em tela.
Ou seja, os requisitos previstos no art. 5º, caput e §3º, da EC nº 103/2019 foram integralmente reproduzidos no art. 1º, caput e §2º, da LCE nº 15.453/2020. Enquanto os requisitos previstos no art. 10, §2º, inciso I, da EC nº 103/2019 são idênticos àqueles dispostos no art. 2º da LCE nº 15.453/2020.
Portanto, uma vez mantida a eficácia e validade da presente medida cautelar concedida pelo STF, tanto para fins de suspender a eficácia das expressões “para ambos os sexos”, quanto para aplicar, por simetria, a diferenciação contida no art. 40, inciso III, da CF/1988, na redação dada pela EC nº 103/2019 (3 anos de redução para todos os prazos), restabelecendo-se, assim, a necessária diferenciação etária e temporal entre homens e mulheres policiais civis, a LCE nº 15.453/2020 deve ser lida da seguinte forma:
Art. 1º O policial civil do órgão a que se refere o inciso IV do caput do art. 144 da Constituição Federal, bem como o agente penitenciário a que se refere o art. 5º da Lei Complementar nº 13.259, de 20 de outubro de 2009, que tenham ingressado nas respectivas carreiras ou em quaisquer das carreiras das polícias militares, dos corpos de bombeiros militares ou de agente socioeducativo, até a data de entrada em vigor da Lei Complementar nº 14.750, de 15 de outubro de 2015, e que não tenham aderido ao Regime de Previdência Complementar – RPC/RS, poderão se aposentar, na forma da Lei Complementar Federal nº 51, de 20 de dezembro de 1985, observada a idade mínima de 55 (cinquenta e cinco) anos para [ambos os sexos] para os homens e 52 (cinquenta e dois) anos para as mulheres ou o disposto no § 2º.
[...]
§2º. Os servidores de que trata o caput poderão aposentar-se aos [52 (cinquenta e dois)] 50 (cinquenta) anos de idade, se mulher, e aos 53 (cinquenta e três) anos de idade, se homem, desde que cumprido período adicional de contribuição correspondente ao tempo que, na data de entrada em vigor da Emenda à Constituição Federal nº 103, de 12 de novembro de 2019, faltaria para atingir o tempo de contribuição previsto na Lei Complementar Federal nº 51, de 20 de dezembro de 1985.
Art. 2º O policial civil do órgão a que se refere o inciso IV do caput do art. 144 da Constituição Federal, bem como o agente penitenciário a que se refere o art. 5º da Lei Complementar nº 13.259, de 20 de outubro de 2009, que não se enquadrem no disposto no caput do art. 1º, poderão se aposentar, nos termos da referida Lei Complementar, observada a idade mínima de 55 (cinquenta e cinco) anos, com 30 (trinta) anos de contribuição e 25 (vinte e cinco) anos de efetivo exercício em cargo das carreiras de que trata o § 1º do art. 1º, [para ambos os sexos] se homem; e idade mínima de 52 (cinquenta e dois) anos, com 27 (vinte e sete) anos de contribuição e 22 (vinte e dois) anos de efetivo exercício em cargo das carreiras de que trata o § 1º do art. 1º, se mulher.
Não obstante, em manifestação recentemente anexada aos autos da ADI nº 7.727/DF, a Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul (PGE/RS) tenha defendido que, a contar da EC nº 103/2019, seria exclusivamente dos Estados a competência para legislar sobre a idade mínima para aposentadoria de seus servidores, e que, assim, os efeitos da presente ação estariam limitados às servidoras integrantes das Polícias Federais e do Distrito Federal, cuja competência legislativa seria da União. Entendimento, contudo, que não se coaduna com o que dispõe o art. 24, inciso XVI e §§ 1º ao 4º, da Constituição Federal que trata da competência legislativa concorrente, porém, atribuíndo à União a competência para o estabelecimento das normas gerais que não poderão ser contrariadas pelas normas estaduais.
Prudente, ainda, que se faça as seguintes considerações finais:
1º) Conforme expresso em decisão complementar, exarada pelo min. Flávio Dino, em 24/outubro último, os efeitos da medida cautelar, por não ter eficácia retroativa, não alcançam situações já consolidadas (por exemplo, eventuais aposentadorias já concedidas com base nos requisitos exigidos no texto original da EC nº 103/2019);
2º) Acaso não referendada pelo Plenário do STF e/ou julgada, ao final, improcedente a ADI nº 7.727/DF, as eventuais aposentadorias especiais concedidas as mulheres policiais civis, com base na redução etária e temporal ora deferidas cautelarmente, deverão ser tornadas insubsistentes e, como consequência, tais servidoras deverão retornar ao serviço ativo para a implementação dos períodos faltantes, salvo eventual modulação de efeitos por parte do próprio STF;
3º) De acordo com a própria decisão cautelar, caberá ao Congresso Nacional, a edição de norma que corrija a presente inconstitucionalidade quanto às mulheres, na qual deverá ser adotada a diferenciação que considerar cabível em face da discricionariedade legislativa, ou seja, poderá ser implementada redução etária e temporal diversa (maior ou menor) do que os 3 anos ora fixados pelo STF, em simetria, a regra da própria EC nº 103/2019. Bem como, uma vez afastada a alegação da PGE/RS acerca da competência legislativa exclusiva, caberá à Assembleia Legislativa Estadual (ALRS) editar, também, Lei Complementar Estadual para adequar tais regras às policiais civis no âmbito estadual;
4º) e, por fim, lembrar que também é objeto de ADI (nº 6.309/DF) a própria definição acerca de se é, ou não, compatível com a Constituição Federal, a fixação de idade mínima para as aposentadorias especiais. Fato que, posteriormente, poderá gerar nova alteração em tal regime especial de inativação.
Este, portanto, é apenas mais um capítulo da aparente busca interminável por segurança jurídica nas regras de inativação com que têm se deparado os servidores da Polícia Civil.
Ronaldo Costalunga Gotuzzo – advogado (OAB/RS nº 51.983), especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública. Sócio da Costalunga Gotuzzo Advogados, que desde 2008 presta assessoria jurídica ao SINPOL-RS.
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